O incompreendido escritor jardineiro

O que fazer quando os conselhos que funcionam para a maioria não funcionam para você?

Existem dois tipos de escritores, os arquitetos e os jardineiros. Os jardineiros, quando se deparam com a famosa metáfora do George R.R. Martin sobre o seu processo criativo, imediatamente se identificam, pensando “Nossa! Eu sou exatamente assim!”. Já os arquitetos não entendem como raios isso funciona e concluem que quem escreve desse jeito deve estar fazendo algo de errado.

Eu estou brincando, é claro, sei que nem todos os arquitetos são assim. Porém, navegando a internet em busca de conteúdo sobre escrita criativa você encontra muitos que são. Quando você é um escritor jardineiro e por algum motivo trava na escrita da sua história, é muito difícil encontrar ajuda para destravar. A maioria dos professores de escrita criativa declara que o planejamento à moda dos escritores arquitetos é a única solução para o bloqueio criativo. Existem até mesmo os que alertam os seus alunos sobre os perigos da jardinagem antes mesmo de eles terem qualquer problema. Um manuscrito incoerente, necessidade de “perder muito tempo” editando e reescrevendo e, em casos extremos, perda de ânimo e falha em terminar o seu livro são alguns dos riscos citados.

Não é que esses riscos não existam, pelo contrário, eles são muito reais. Porém, o que eu acho que muitos arquitetos não entendem é que planejamento reduz esses riscos para eles, por causa da forma particular que a mente deles funciona. Para mim, ser jardineira tem muito a ver com a forma como a minha cabeça funciona de forma geral. Eu sou uma pessoa do espectro autista e uma das minhas dificuldades está na função executiva, o que afeta diretamente minhas habilidades de planejamento e organização.

Sempre que me deparo com uma tarefa complexa, eu acho muito mais fácil proceder de maneira intuitiva, numa abordagem meio tentativa e erro, do que tentar bolar um planejamento teórico e depois implementar. Acho que muitas pessoas têm a impressão errônea de que se você consegue fazer algo complexo como escrever um livro procedendo dessa forma, ou você é uma espécie de gênio que “não precisa planejar” ou você é um amador que conseguiu apesar de não planejar. Na maioria das vezes, não é nem uma coisa nem outra. Apenas existem pessoas que têm mais facilidade de, por exemplo, encaixar uma história numa estrutura narrativa depois que já existe um texto escrito do que antes. Essas pessoas não são mais ou menos inteligentes do que as que acham mais fácil definir a estrutura de maneira prévia, elas apenas têm habilidades diferentes.

Os leitores que acompanham o meu trabalho talvez já desconfiem do motivo pelo qual estou falando disso. Até pouco tempo atrás, eu estava sofrendo com a escrita da continuação de Colégio do Lago Transverso. Quando eu sentava para escrever, as ideias não surgiam de maneira espontânea como sempre haviam surgido. Escrever Colégio 2 havia se tornado uma obrigação, e não mais uma diversão, como havia sido o primeiro livro.

Comecei a assistir aulas e ler textos sobre escrita criativa em busca de algo que me ajudasse a destravar. Nisso eu encontrei muita gente batendo na tecla do planejamento, e cheguei a tentar a abordagem pensando “vai que?”. Como você deve imaginar, não funcionou, ou eu não estaria escrevendo esse texto.

A questão é que, no fim das contas, eu não estava travada por falta de planejamento, o meu problema era falta de motivação e conexão com a história. E eu só consegui descobrir isso depois que comecei o minicurso de narrativas longas do EscambaClube. Na primeira aula, Wilson Júnior, professor do curso e autor de 999 e Trama Ancestral, fala de como um romance, por ser uma empreitada que demanda um tempo longo, requer que o escritor se esforce para se manter motivado e conectado com a história. O ideal seria fazer isso escrevendo todos os dias, mas nem todo mundo consegue manter esse ritmo. Existem pessoas neurodiversas que às vezes são incapazes de produzir, gente com rotinas de trabalho pesadas, responsabilidades familiares etc. Por isso, Wilson sugere que o autor monte um mapa de influências para, nos dias em que não pode ou não quer escrever, poder se inspirar e se manter conectado com a história apesar disso.

Esse conselho simples me ajudou bastante. Eu no momento estou terminando meu doutorado em física. Em simultâneo, estou passando por uma crise depressiva. Não é de se espantar que eu tenha pouco tempo para escrever, e que quando me sobra tempo, frequentemente me falta ânimo. Planejar não me ajudava em nada porque do que adiantava saber o que ia acontecer em um capítulo se eu não sentia nenhum prazer escrevendo? Agora, nos dias em que minha energia está baixa demais para escrever, eu tento fazer outras coisas relacionadas ao universo de Colégio do Lago Transverso para cultivar a minha conexão com a história. Algo que eu descobri que gosto bastante de fazer é desenhar, e nesse último mês eu produzi duas ilustrações muito fofas da Alice e do Seiji. Eu também consegui terminar o capítulo 7, que inclui cenas que eu estava querendo escrever há um bom tempo e, modéstia à parte, está muito bom.

Ilustração da personagem Alice de Colégio do Lago Transverso. A Alice está desenhada em estilo chibi, é uma menina branca de cabelos castanhos chanel e franja, que usa um penteado tipo space buns. Veste um tapa olho branco com coração vermelho no meio. Seus olhos são castanhos e ela está usando um uniforme escolar típico de internato inglês, com blazer e saia pretos, blusa branca, gravata borboleta vermelha e colete vermelho. Usa meias listradas em cores diferentes (rosa e branco e vermelho e branco) e sapatos pretos. Ela está com uma expressão surpresa, segurando um diário e correndo. O fundo parece uma carta de baralho, a carta é da cor preta com os símbolos do ás de copas nas laterais em branco. Há uma moldura branca num formato vintage e dentro dela está a Alice, sob um fundo quadriculado em vermelho e preto. Cada quadrado tem a silhueta de um tapa-olho com um coração no meio (preto nos quadrados vermelhos e vermelho nos quadrados brancos).

Ilustração da Alice de Colégio do Lago Transverso

Ilustração do personagem Seiji de Colégio do Lago Transverso. Ele está desenhado em estilo chibi, é um menino asiático de cabelos pretos lisos e curtos com franja. Seus olhos são castanhos tem olheiras arroxeadas. Ele está usando um uniforme escolar típico de internato inglês, com blazer e calça pretos, blusa branca, gravata preta, colete verde acinzentado e sapatos pretos. Está de braços cruzados usando o blazer apoiado nos ombros como se fosse uma capa, com um olhar julgador cortante. O fundo parece uma carta de baralho, a carta é da cor preta com os símbolos do valete de espadas nas laterais em branco. Há uma moldura branca num formato vintage e dentro dela está o Seiji, sob um fundo quadriculado em verde e preto. Cada quadrado tem a silhueta de uma gravata (preta nos quadrados verdes e verde nos quadrados pretos).

Ilustração do Seiji de Colégio do Lago Transverso

Em resumo, planejamento é uma ferramenta muito poderosa para auxiliar escritores na tarefa formidável de terminar um livro, mas não é um elixir mágico que funciona para todo mundo e em todos os casos. Alguns escritores trabalham melhor com uma abordagem mais “mão na massa”, e isso não é nem um indício de genialidade nem um defeito que deve ser combatido. Esses escritores podem ter bloqueios criativos como quaisquer outros, mas nem sempre a falta de planejamento é o motivo do bloqueio criativo. Na hora de pensar o ensino de escrita criativa, é fundamental ter em mente que pessoas são diversas. Na verdade, existem vários tipos de escritores; alguns são arquitetos, alguns são jardineiros, alguns não são nenhum dos dois e tá tudo bem.