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Venha trabalhar no Colégio Helmyre
Sobre a noite em que Faust Helmyre decide se tornar professor de Biologia
Para quem não sabe, MJ Luna, minha amizade e autoria que admiro, está publicando um novo conto chamado Através de olhos escarlates, e eu tive o prazer não só de betar esse conto como de escrever o prefácio! Como parte do marketing de pré-venda, MJ Luna prometeu uma cena extra no conto caso vendesse 20 unidades. Eu resolvi dobrar a aposta
A promessa que eu fiz lá no Bluesky
A meta foi batida e promessa é dívida, então estou cumprindo desde já. Aproveitem a leitura!
Venha trabalhar no Colégio Helmyre
“Venha trabalhar no Colégio Helmyre!” dizia o anúncio colado na porta da sala dos professores. Aquela era… o quê? A terceira vez que Faust passava por ali na última meia hora? Tinha de admitir que estava perdido. Deveria ter prestado mais atenção na explicação do porteiro quando perguntara onde era a sala do diretor. Resmungou em voz baixa. Não tinha ninguém no corredor para quem pudesse pedir informações, e Ingram se recusava a atender o celular.
Foi então que notou: a luz da sala dos professores não estava acesa? Chegou mais perto. O brilho vindo do outro lado da porta era fraco e amarelado demais para uma lâmpada fluorescente convencional, o que explicava por que não havia reparado na iluminação antes.
Olhou o celular. Já eram oito e meia da noite. Seu irmão devia ser um chefe horrível se obrigava seus funcionários a trabalharem até aquela hora sem nem comprar lâmpadas decentes. Um calafrio subiu por sua espinha só de pensar que aquele poderia ter sido o seu destino, se não tivesse desistido do curso de licenciatura no último semestre.
Bateu na porta, mas ninguém respondeu. Girou a maçaneta para ver se estava trancada. Não estava. Com cuidado, entreabriu a porta e colocou o rosto para dentro da sala. Logo notou que a luz vista do corredor não vinha de uma lâmpada, e sim de um candelabro. Havia um homem ali, tão concentrado em seu trabalho que sequer havia percebido Faust abrindo a porta. A luz morna das velas banhava sua pele pálida, e mechas de seus cabelos negros escapavam do rabo de cavalo, emoldurando delicadamente seu rosto. Terminou de corrigir uma das provas da pilha amontoada à sua frente, suspirou e tomou um gole da bebida escarlate que repousava em uma taça ao seu lado. Só então ele reparou em Faust.
— Pois não, senhor? — perguntou o professor.
O coração de Faust deu uma acelerada brusca. Se soubesse que aquele dia daria de cara com um homem que fazia exatamente o seu tipo, não teria saído de casa com uma blusa velha do Naruto e o cabelo preso em um coque feito com uma caneta ganhada como souvenir em um evento de microbiologia de seis anos atrás. Forçou um sorriso e entrou na sala. Talvez estivesse escuro o suficiente para que o professor bonito não reparasse na gravidade de seu estado desarrumado.
— Olá, boa noite, senhor professor. Desculpe pela interrupção. Você gostaria que eu ligasse a luz? — perguntou Faust, com o dedo no interruptor.
— Não, obrigado. Deixe estar. — O homem abanou a mão em um gesto de negativa. Em seguida, levantou-se da cadeira e caminhou até Faust. — O que deseja?
Com uma expressão confusa no rosto, Faust retraiu a mão, deixando as luzes apagadas. Até aquele momento, estivera certo de que aquele professor só não tinha se dado ao trabalho de ligar a luz quando começara a escurecer, mas parecia que ele queria corrigir provas no escuro mesmo, sabe-se lá por quê. Não parecia ser bom para a vista, mas Faust tinha plena consciência de que sua moral para questionar os hábitos pouco saudáveis dos outros era zero.
— Ah... Certo. Eu estou procurando a sala do diretor. Você saberia me dizer onde é? — perguntou.
— Decerto. O senhor é pai de algum aluno?
A pergunta banal atingiu a autoestima de Faust como um soco no estômago. Qual era a idade dos alunos daquele colégio? Quinze a dezoito? Talvez os mais novos tivessem quatorze? Aquele professor achava que ele tinha quantos anos? Quarenta, cinquenta e poucos? Ele estava mesmo tão acabado assim?
— Senhor? — o professor chamou sua atenção.
— Oi? Não, eu não sou pai de nenhum aluno. Eu tenho trinta e um anos! Eu pareço ter mais de trinta e um anos? É por que meu cabelo é branco? Isso é só uma coisa da minha família, o meu irmão também ficou grisalho cedo!
— Ah... Não? — O professor hesitou, constrangido ao perceber a sua gafe. — Perdão, eu só supus... Que o senhor poderia ser mais velho do que parecia! É algo muito comum, pessoas que parecem mais novas do que são de fato! Por exemplo, o meu avô, Lestat Zugravescu…
— Seu avô se chamava Lestat Zugravescu? — Faust interrompeu.
— S-Sim... Por quê? O senhor já ouviu falar nele?
— Você acreditaria se eu dissesse que já usei esse nome num personagem de RPG uma vez?
— Quando o senhor diz RPG, se refere àquele jogo que os alunos às vezes jogam, com os dados coloridos?
Ótimo, agora o professor bonito achava que ele era um velho que jogava jogos para crianças. Faust coçou a nuca e deu uma risada sem graça.
— Isso. Mas que coincidência estranha, né. O pior é que eu criei esse personagem há muito tempo atrás e bom, a campanha que joguei com ele foi bem longa, então eu acabei lembrando… Eu nem lembro direito de onde eu tirei esse nome… Mas enfim, o nome do seu avô é muito legal.
— Obrigado. O meu nome também é Lestat Zugravescu. – O professor abriu um sorriso, revelando caninos mais longos do que deveriam ser.
Os olhos de Faust se fixaram, fascinados, nos dentes pontudos por alguns instantes, depois se moverem lentamente para o vermelho profundo da bebida na taça que Lestat deixara sobre a mesa. Ao perceber o olhar de Faust, Lestat fechou a boca de imediato, como se tivesse se arrependido do que acabara de fazer.
— O-o senhor está com sede? Eu não sei se tem mais chá gelado de frutas vermelhas, mas posso verificar na geladeira — perguntou Lestat.
Faust voltou a encarar o professor. De repente, ele se lembrava onde havia escutado o nome Lestat Zugravescu pela primeira vez. Lestat Zugravescu havia sido o professor de História de Ingram. Há vinte anos.
— Ah… Não, obrigado. Mas só de curiosidade, há quanto tempo o senhor dá aula nesse colégio?
— Curioso o senhor perguntar isso. Esse ano, fazem exatamente vinte anos que trabalho aqui.
Faust sentiu seu queixo cair. Como aquilo era possível? Aquele homem não parecia ser muito mais velho do que ele. Arriscaria dizer que ele parecia até mais novo, com aquela pele perfeita. Com que idade ele havia começado a trabalhar? Dezoito?
— Ah, e… De novo, só de curiosidade. O seu avô, que tem o mesmo nome que você, se parecia com você? — Faust perguntou.
Lestat arregalou os olhos.
— Como o senhor sabia disso...?
— Ah! Eu não sabia! Eu só estava perguntando, de curiosidade, porque eu estava curioso, e também porque eu queria saber! — falou Faust, torcendo para que aquele homem não conseguisse ler sua mente.
Lestat deu um sorriso sem graça. Dessa vez, sem mostrar os dentes.
— Bom... O senhor queria saber onde é a sala do diretor, sim? — ele perguntou.
O professor começou a explicar como se fazia para chegar na sala de Ingram dali, mas Faust não prestava mais atenção. Em vez disso, encarava Lestat atentamente, fazendo uma lista mental de todas as suas características suspeitas. Pálido, extremamente atraente, com dentes anormalmente pontudos. Pelo sobrenome, devia ter alguma ascendência do leste europeu. Linguajar formal e cheio de palavras velhas demais para a idade que aparenta. Postura e gestos elegantes e aristocráticos. Roupas antiquadas. Trabalha à noite, à luz de velas. Estranhamente preocupado em especificar que o líquido escarlate em sua taça de vinho é apenas chá gelado de frutas vermelhas. E ainda tinha o nome, Lestat. Quem diabos se chama “Lestat” sem ser um…
— É melhor o senhor ir logo, ou talvez os senhores se desencontrem! — Exclamou o dito cujo, interrompendo os devaneios de Faust. Claramente, Lestat queria se livrar dele, e Faust tinha certeza que sabia o porquê.
Uma vez que havia sido expulso da sala, o homem percebeu que estava exatamente na mesma situação em que havia começado: sem saber como chegar na sala do diretor. Tentou ligar outra vez, torcendo para que seu irmão atendesse e não precisasse voltar e explicar pra Lestat que não havia prestado absolutamente nenhuma atenção na explicação que ele acabara de lhe dar. Felizmente, Ingram atendeu daquela vez e explicou o caminho, ainda que de forma mal-humorada.
Quando chegou no escritório, viu o diretor sentado em sua escrivaninha, usando aquele terno que o fazia parecer importante. Faust às vezes se perguntava se o armário dele era constituído por um monte de roupas pretas iguais, porque fazia anos que ele não via Ingram vestindo algo diferente. Seu irmão foi direto ao ponto, como sempre:
— O que você quer?
Aquela era uma boa pergunta. O que Faust queria mesmo? Estava tão emocionado com sua descoberta sobre o professor misterioso que havia se esquecido. Ah, é! Dinheiro de aluguel. Ele precisava de dinheiro emprestado para não ser despejado.
— Olá, Ingram. Como você está? Eu estou muito bem, porém, desempregado.
— Você veio me pedir dinheiro? — o diretor perguntou, sem nem tirar os olhos do que quer que fosse a burocracia que ele estava resolvendo.
— Inicialmente sim, mas eu por coincidência tive um encontro fortuito com um dos professores daqui... Lestat Zugravescu é o nome dele, e preciso perguntar. Ele foi seu professor de História quando você era aluno?
Ingram parou o que estava fazendo e olhou para ele com uma expressão de quem estava tentando descobrir o que o irmão tramava.
— Sim, por quê?
— E você diria que ele mudou muito, fisicamente, desde então?
O diretor levantou o olhar como se pensasse a respeito.
— Agora que você comentou… Realmente, ele não mudou praticamente nada desde aquela época. É um tanto invejável, devo admitir.
— Eu sabia! — Faust exclamou. — Ele é um vampiro.
Ingram arregalou os olhos.
— Com licença? Você disse que o professor Zugravescu é um vampiro?
Faust retribuiu ao choque de seu irmão com uma cara tão surpresa quanto a dele.
— Não é óbvio? Não me diga que você não percebeu!
O diretor apertou as têmporas como se estivesse tendo uma crise de enxaqueca.
— Veja bem, Reginald, a família Zugravescu trabalha no Colégio Helmyre há mais de um século. Essa insinuação que você está fazendo...
— Não, deixa eu adivinhar. O “avô” dele dava aula aqui — Faust interrompeu, fazendo sinal de aspas com os dedos. Estava tão focado em reunir evidências que comprovassem sua teoria que nem se incomodou em ser chamado de “Reginald”.
Ingram fez cara de quem havia comido algo azedo.
— Sim, o avô dele dava aula de História aqui até se aposentar. O tataravô dele e o nono avô também.
— Ah, História! É óbvio que um vampiro daria aula de História! Por acaso você já viu todos eles no mesmo aposento?
O diretor fechou mais ainda a cara.
— Mas é claro que não! Eles já faleceram!
— Que conveniente! E deixa eu adivinhar: todos eles só podiam trabalhar de noite. Estou certo?
A testa de Ingram estava tão enrugada que parecia que ele havia envelhecido dez anos desde que Faust entrara na sala.
— O professor Zugravescu é alérgico a luz solar. É um problema de origem genética, então não é tão estranho assim que outros membros da família dele também sofressem disso. De toda forma, ele prefere trabalhar à noite por conta disso, e nós não nos incomodamos em acomodar essa preferência. Mas quer saber? Esquece. Tenho coisas mais importantes para fazer do que tentar convencer um homem adulto de que vampiros não existem.
— Eu também achava que vampiros não existissem até alguns minutos atrás, quando eu encontrei um na sala dos professores!
— Quanto eu preciso te pagar para você ir embora?
— Nada! Eu não quero mais dinheiro. Eu quero um emprego! Você pode ter escolhido virar os olhos para a verdade, mas eu vou provar para todo esse colégio que existe um vampiro dando aula entre nós!
— Te dar um emprego? Que emprego? Não temos vaga para palhaço.
— Muito engraçado. Eu sei que vocês estão contratando, eu vi o folheto!
— Estamos procurando professores de Matemática, Biologia e Química. Que eu saiba, você não é nenhum dos três.
— Eu poderia ser um professor de Biologia! — Faust protestou.
— Ah, é? Você diz isso porque você fez Biologia e não se formou, porque fez Medicina e também não se formou, ou porque fez Biotecnologia e, novamente, não se formou?
— Exatamente! Eu estou há mais de dez anos estudando Biologia na faculdade, de uma forma ou de outra!
Ingram esfregou os olhos de cansaço.
— Eu não sei porque eu ainda perco tempo discutindo com você.
— Isso significa que você vai me contratar?
O diretor parou para pensar por uns instantes enquanto girava a caneta entre os dedos.
— Eu deixo você fazer o processo seletivo, que tal? Só para a nossa mãe não encher o meu saco dizendo que eu não te dou nenhuma chance de consertar a sua vida.
Faust juntou as mãos em um gesto de comemoração.
— Maravilha! Você não vai se arrepender, Ingram! — declarou, deu um giro e saiu da sala antes que seu irmão pudesse dizer “duvido”.